O termo “divórcio post mortem” refere-se a uma situação jurídica incomum em que o divórcio é formalizado após a morte de um dos cônjuges.
A possibilidade da dissolução da sociedade conjugal e do vínculo conjugal não é amplamente reconhecida ou praticada na maioria dos sistemas legais, já que o casamento geralmente é considerado dissolvido pela morte. O artigo 1.571 do Código Civil brasileiro dispõe sobre as formas de término da sociedade conjugal, porém a legislação não faz nenhuma abordagem sobre a possibilidade do divórcio post mortem, criando assim uma lacuna legislativa e, por isso, os tribunais têm interpretado essa questão de maneira flexível.
Art. 1.571. A sociedade conjugal termina:
I – pela morte de um dos cônjuges;
II – pela nulidade ou anulação do casamento;
III – pela separação judicial;
IV – pelo divórcio.
§ 1 o O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente.
§ 2 o Dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conversão, o cônjuge poderá manter o nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a sentença de separação judicial.
Em algumas jurisdições ou situações específicas, pode haver circunstâncias em que um divórcio post mortem é requerido, neste caso, passamos a fazer duas análises:
Quando o processo de divórcio já estava em andamento antes do falecimento, e o cônjuge falecido havia manifestado sua intenção de dissolver o casamento, a jurisprudência tem sido favorável à realização do divórcio. Nesse caso, a regularização do vínculo é mais simples, pois o processo já estava em curso antes da morte.
Além do casamento, temos também a união estável. Se a união estável é registrada há de ser equiparada ao casamento para todos os efeitos jurídicos, salvo naquilo em que a eventual informalidade da união estável possa prejudicar terceiros de boa-fé. A jurisprudência a seguir ilustra como esses casos podem ser mais complexos quando o processo não foi iniciado enquanto a pessoa estava viva. Nesse caso específico, o juiz cassou a sentença de ofício porque não houve a integração de todos os herdeiros ao feito. É um bom complemento para mostrar como a análise judicial pode variar dependendo do tipo de vínculo conjugal ou estável
EMENTA: APELAÇÃO – AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM – POLO PASSIVO – TODOS OS HERDEIROS – NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO AO FEITO – IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO – SENTENÇA CASSADA DE OFÍCIO. Afigura-se necessária a integração de todos os herdeiros do falecido ao polo passivo da ação de reconhecimento de união estável post mortem, conquanto a procedência do pedido atingirá seus respectivos quinhões.
(TJ-MG – AC: 10116180018545001 Campos Gerais, Relator: Kildare Carvalho, Data de Julgamento: 26/05/2022, Câmaras Especializadas Cíveis / 4ª Câmara Cível Especializada, Data de Publicação: 26/05/2022)
Por outro lado, se o casamento já estava desfeito de fato, mas o processo de divórcio não havia sido iniciado, a situação exige uma análise mais detalhada. Nesses casos, o juiz precisa avaliar cuidadosamente se a separação de fato ocorreu antes do falecimento e se a decisão não causará prejuízos a terceiros interessados.
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DIVÓRCIO POST MORTEM. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 66/2010. AUTONOMIA PRIVADA DOS CÔNJUGES. PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA DO ESTADO EM QUESTÕES AFETAS ÀS RELAÇÕES FAMILIARES. MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DO TITULAR. ÓBITO DO CÔNJUGE DURANTE A TRAMITAÇÃO DO PROCESSO. DISSOLUÇÃO DO CASAMENTO. DIREITO POTESTATIVO. EXERCÍCIO. DIREITO A UMA MODIFICAÇÃO JURÍDICA. DECLARAÇÃO DE VONTADE DO CÔNJUGE. RECONHECIMENTO E VALIDAÇÃO. AÇÃO JUDICIAL DE DIVÓRCIO. PRETENSÃO RECONVENCIONAL. SOBREPOSIÇÃO AO CARÁTER PERSONALÍSSIMO DO DIREITO. HERDEIROS DO CÔNJUGE FALECIDO. LEGITIMIDADE. EFEITOS SUCESSÓRIOS, PATRIMONIAIS E PREVIDENCIÁRIOS. PEDIDO DE EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. NEMO POTEST VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. MODALIDADE DE EXERCÍCIO INADMISSÍVEL DE UM DIREITO. RECURSO DESPROVIDO. 1. Trata-se de controvérsia jurídica sobre a possibilidade de decretação do divórcio na hipótese do falecimento de um dos cônjuges após a propositura da respectiva ação. 2. Após a edição da Emenda Constitucional n. 66/2010 é possível a dissolução do casamento pelo divórcio independentemente de condições e exigências de ordem temporal previstas na Constituição ou por ela autorizadas, passando a constituir direito potestativo dos cônjuges, cujo exercício decorre exclusivamente da manifestação de vontade de seu titular. 3. Com a alteração constitucional, há preservação da esfera de autonomia privada dos cônjuges, bastando o exercício do direito ao divórcio para que produza seus efeitos de maneira direta, não mais se perquirindo acerca da culpa, motivo ou prévia separação judicial do casal. Origina-se, pois, do princípio da intervenção mínima do Estado em questões afetas às relações familiares. 4. A caracterização do divórcio como um direito potestativo ou formativo, compreendido como o direito a uma modificação jurídica, implica reconhecer que o seu exercício ocorre de maneira unilateral pela manifestação de vontade de um dos cônjuges, gerando um estado de sujeição do outro cônjuge. 5. Hipótese em que, após o ajuizamento da ação de divórcio o cônjuge requerido manifestou-se indubitavelmente no sentido de aquiescer ao pedido que fora formulado em seu desfavor e formulou pedido reconvencional, requerendo o julgamento antecipado e parcial do mérito quanto ao divórcio. 6. É possível o reconhecimento e validação da vontade do titular do direito mesmo após sua morte, conferindo especial atenção ao desejo de ver dissolvido o casamento, uma vez que houve manifestação de vontade indubitável no sentido do divórcio proclamada em vida e no bojo da ação de divórcio. Não se está a reconhecer a transmissibilidade do direito potestativo ao divórcio; o direito já foi exercido e cuida-se de preservar os efeitos que lhe foram atribuídos pela lei e pela declaração de vontade do cônjuge falecido. 7. Legitimidade dos herdeiros do cônjuge falecido para prosseguirem no processo e buscarem a decretação do divórcio post mortem. 8. A intenção do autor da ação em ver extinto o processo sem resolução do mérito revela comportamento contraditório com a anterior conduta de pretender a decretação do divórcio. O nemo potest venire contra factum proprium tem por efeito impedir o exercício do comportamento em contradição com a conduta anteriormente praticada, com fundamento nos princípios da boa-fé e da confiança legítima, sendo categorizado como forma de exercício inadmissível de um direito. Nessa concepção, consubstancia-se em forma de limite ao exercício de um direito subjetivo propriamente dito ou potestativo. 9. Possibilidade de decretação do divórcio post mortem reconhecida. 10. Recurso desprovido.
(STJ – REsp: 2022649 MA 2022/0268446-0, Relator: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Julgamento: 16/05/2024, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 21/05/2024)
Portanto, o divórcio post-mortem é viável, mas sua concessão depende de uma análise cuidadosa e detalhada do caso concreto. Na maioria das situações, essa necessidade surge em razão da adequação das questões patrimoniais e sucessórias, especialmente para resolver conflitos relacionados à herança, partilha de bens e direitos de propriedade, entre outros.
O objetivo é garantir que a situação seja regularizada de forma justa, levando em consideração os interesses dos envolvidos e a preservação dos direitos do cônjuge sobrevivente.
Espero que este conteúdo tenha sido útil para você ou para alguém que você conheça. Para mais informações e dicas jurídicas, nos siga e fique por dentro de tudo!
ELIANE SANTOS – advogada. Pós graduada em Direito Civil e Processo Civil.